COVID-19: Menor cidade do Brasil controla 'até os espirros' via WhatsApp

Serra da Saudade – Sem hospitais ou qualquer tipo de leito
para acolher doentes, mesmo que improvisado, e apenas um centro de saúde, Serra
da Saudade, a menor cidade do Brasil, encravada entre as montanhas de Minas
Gerais, surpreende com seu aprendizado sobre a morte trazida pelo novo
coronavírus e as transformações da vida após a chegada da COVID-19.
Num clima quase familiar, os 776 habitantes
do município enfrentaram o vírus com a firmeza de uma clausura para evitar as
contaminações, a troca on-line de informações sobre o avanço da infecção e os
conterrâneos que apresentavam sintomas, além da crença imbatível na proteção
das vacinas.
Em quase três anos de pandemia, os
serrano-saudalenses dão lição ao Brasil do combate bem-sucedido à doença. A
pequena cidade do Centro-Oeste de Minas, distante 259 quilômetros de Belo
Horizonte, perdeu uma moradora devido a complicações da doença, conta 84 casos
confirmados de COVID-19, e duas pessoas internadas. Um dos pacientes é o
secretário de Educação, Ivan Ernani de Oliveira, hospitalizado na vizinha Bom
Despacho.
Todos os maiores de 12 anos (709 pessoas) se
imunizaram com a primeira dose e 94% contam com o esquema vacinal completo, de
acordo com a Secretaria Municipal da Saúde. Dentro da margem de erro, apenas
três moradores rejeitaram a imunização. Nem por isso o alarme para a COVID-19
foi desligado, como observou o Estado de Minas em visita à cidade.
Por meio de um único grupo no WhatsApp, que
reúne ao menos um representante de cada família, é feito o monitoramento da
doença, conta a contadora da prefeitura, Maria Auxiliadora Menezes, responsável
pela iniciativa de usar a ferramenta digital de forma coletiva.
“Criei o grupo logo quando os casos de
COVID-19 chegaram às cidades próximas de Serra da Saudade, como Estrela do
Indaiá e Dores do Indaiá. Adicionei, primeiro, os funcionários públicos de quem
tinha o telefone e cadastrei todos como administradores. Daí, eles foram
incluindo outras pessoas. Praticamente toda família tem um representante lá”,
diz Auxiliadora.
No espaço virtual, os participantes
compartilham informações oficiais sobre a COVID-19, notícias, além de praticar
uma espécie de “fofoca do bem”. “A cidade é pequena, todo mundo dá notícia de
tudo. Espirrou, acabou, todos ficam sabendo! Agora na pandemia, literalmente!
Então, quando as pessoas viam vizinhos com sintomas gripais, logo comentavam no
grupo e questionavam por que não estavam em isolamento. A mesma coisa quando
eventualmente furavam a quarentena ou recebiam visitas de fora da cidade.”
Para reforçar o monitoramento de visitantes,
a prefeitura manteve barreiras sanitárias nas entradas da cidade por mais de um
ano. Os locais foram equipados com termômetros para aferição de temperatura e
álcool em gel. Ainda segundo Auxiliadora Menezes, o grupo de WhatsApp também
foi uma maneira de proteger a população das notícias falsas sobre a pandemia e
a vacinação.
“Levou um tempo até que caísse a ficha das
pessoas de que a cidade não estava imune à doença por ser muito pequena. O
grupo, nesse sentido, funcionou como canal oficial de informações sobre a
avanço da pandemia”, explica a servidora.
Vacinado
com as três doses da vacina contra a COVID-19, Osmar Pinto Moreira, de 71 anos,
lamenta a decisão dos poucos e conhecidos conterrâneos negacionistas de não se
vacinarem. Ele é viúvo de Maura Maria Rocha Moreira, que morreu em 28 de
janeiro de 2021, em razão de complicações decorrentes da doença respiratória.
A morte dela não consta nos boletins
epidemiológicos do estado como notificação em Serra da Saudade, pois foi
registrada em Bom Despacho, a 109 quilômetros do município. É para onde os
pacientes graves, especialmente, aqueles que demandam internações em centro de
terapia intensiva, são encaminhados.
“Perdi
minha companheira de 50 anos”, diz seu Osmar inconformado, diante do túmulo da
mulher, enterrada no cemitério muni- cipal. “A gente nunca acha que vai
acontecer com a gente, mas essa doença é maligna. As pessoas não deveriam
facilitar, porque ela mata mesmo. Se tivesse vacina quando minha mulher ficou
doente, talvez ela estivesse viva”, emociona-se o ex-trabalhador rural, que
vive sozinho. Pai de seis filhos e avô de seis netos, ele tem a companhia
eventual de familiares.
A maneira como dona Maura foi infectada pelo
vírus ainda é um mistério para seu Osmar. “Ela ia só ao supermercado, né? Nunca
foi de sair. Daí ela pegou e não resistiu, pois era cheia de problemas de
saúde.”
'Sangue
de Jesus'
O negacionismo, porém, está longe de
representar ameaça às recomendações da ciência. O Centro de Saúde de Serra da
Saudade registra três moradores que se recusam a receber a vacina contra o
coronavírus, a despeito dos esforços de persuasão dos profissionais da saúde
municipal. De acordo com a enfermeira Ana Laura Andrade, são dois idosos e uma
criança, cujos pais não permitiram que recebesse a injeção. “Ligamos inúmeras
vezes, fomos à casa deles para tentar aplicar, falamos com eles semanalmente,
mas não teve jeito. Não tomaram nenhuma dose.”
A reportagem do EM encontrou algumas pessoas
que recusam a vacina. Uma deles é o aposentado e artesão Luiz Amaro Ricardo, de
53, que inclusive faz parte de um grupo de alto risco: ele é cadeirante,
hipertenso e diabético.
Com
simpatia, ele recebe a equipe do EM como bom anfitrião mineiro. “Podem entrar,
fiquem à vontade”, convida. Amaro Ricardo é membro da Igreja Evangélica
Congregação Cristã do Brasil.
Questionado sobre o motivo da resistência à
imunização, ele logo se defende. “Olha, isso não tem nada a ver com a minha
igreja, ninguém lá fala nada contra a vacina. Inclusive, os irmãos todos
tomaram. Só eu mesmo que não quis. Já tive trombose, o que me fez perder as
duas pernas. Não quero mais medicamentos do que eu já tomo. Já levei agulhadas
o bastante na vida. Agora, chega”, desabafou.
O medo de adoecer não parece estar entre as
preocupações dele.
“Quem protege é o sangue de Jesus. É só Deus
mesmo para nos guardar.” O outro morador resistente à campanha é o líder da
igreja dele, conhecido como Amaral. Ele não quis falar com a reportagem. A
família que optou por não vacinar a criança não estava em casa.
Fonte Correio Braziliense