De Curitiba, primeira advogada trans a subir na tribuna do STF relembra vivências: ‘Tentaram me exorcizar aos 15’

“Minha família me chamou e perguntou ‘O que
você tem? Não tem vergonha desse teu jeito de viadinho?’ [SIC]. E eu disse ‘Não
sou um viadinho, eu sou uma mulher’. Aí tentaram me exorcizar aos 15 anos [...]
Depois daquilo eu decidi representar um papel. E assim foi durante muitos
anos”.
Esta é uma das lembranças de Gisele
Alessandra Szmidt e Silva, de 52 anos, advogada de Curitiba e a primeira mulher
transexual a fazer uma sustentação oral na tribuna do Supremo Tribunal Federal
(STF), em 2017.
Na
época, Gisele era uma das advogadas que defendiam, pelo Grupo Dignidade, de Curitiba, a legalidade da mudança de nome de transexuais
no registro civil sem a necessidade de cirurgia para mudança de sexo.
No processo, ela foi a última advogada a fazer
sustentação oral defendendo que o estado não poderia condicionar a mudança de
nome à realização da cirurgia, considerada invasiva e com procedimentos que não
são cobertos pela rede pública de saúde.
Quase um ano depois, em março de 2018, o STF
decidiu pela legalidade do pedido.
“Mais que a ausência de modificações corporais, eu
defendi, desde o começo, que para mudança do registro não deveria ser
necessário sequer um processo. É a nossa autonomia. E os demais advogados que
defendiam a causa não tocavam neste ponto, mas eu me preparei para isso.
Defendi até o fim a mudança apenas na manifestação da vontade”, lembrou.
A dor
Para chegar onde está hoje, Gisele lutou contra
tudo – inclusive, contra ela mesma. Afinal, aos 15, mesmo tendo consciência de
que era uma mulher, optou por esconder-se para sobreviver.
Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e
Transsexuais (Antra), mesmo com uma queda de 20% no assassinato de pessoas
transgênero no último ano, o Brasil permanece como o país com a maior taxa de
mortes de pessoas trans no mundo.
Das 140 vítimas em 2021, segundo a Antra, 135 eram
travestis e mulheres trans.
“Na infância, eu era uma criança muito espera,
inteligente, ia bem no colégio. Mas quando eu estava na sexta série, um
professor de educação física me colocou o apelido de 'florzinha'. A partir daí
a minha vida se tornou um inferno. Me tornei alvo constante de agressões.
Aquela criança que aprendia rápido começou a ter problemas para ficar na sala.
Isso prejudicou meu desenvolvimento social”.
A flor
Gisele iniciou a transição aos 35 anos, quando
estava na faculdade de direito.
Ela lembra que, quando começou a fazer
procedimentos estéticos para chegar mais perto do seu verdadeiro eu, ainda
vivia com ajuda da família, que repudiava sua identificação como mulher.
“Uma hora eu pensei ‘Ou eu vivo, ou fico
representando a vida inteira’. Foi uma transição tardia, porque fiquei muito
tempo escondida [...] E a transição nada mais é do que a realização de
procedimentos que te deixem mais perto das características do gênero que você
se identifica. E muitos destes procedimentos são feitos de maneira totalmente
clandestina, porque não há suporte. Algumas operações causam sequelas para a
vida”.
O término da transição, aos 40, foi marcado por uma
série de outros encerramentos na vida. Sua mãe, que enfrentava um câncer e era
cuidada pela então bacharel, faleceu – ainda sem aceitar Gisele.
A família, pouco tempo depois, cortou relações com
a hoje advogada. E diante dos problemas, ela só viu uma solução:
“Vou fazer valer meu curso de direito”.
Gisele foi aprovada em meados de 2014 no exame da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), após fazer um cursinho online e estudar de
segunda a segunda. A partir daqui, ela passou a desbravar lugares nunca antes
acessados por mulheres trans, como:
Primeira advogada trans da região sul do Brasil
Primeira assessora parlamentar trans na Assembleia
Legislativa do Paraná
Primeira assessora parlamentar trans na Câmara
Municipal de Curitiba (Bloco
PT/PV)
Primeira advogada trans a fazer sustentação oral no
STF
“Ainda
tem um abismo pra gente ser inserida em um contexto social, relacionada a
trabalho, a namoro, casamento [...] O que nós precisamos é de ferramentas de
combate à transfobia. E isso na vivência trans não acontece. Somos
rotineiramente fetiche, excluídas e até impedidas de usar o banheiro. É uma
luta por dignidade”.
Fonte
G1